Refeição em família


A reunião de todos os membros da família em volta da mesa para as refeições, ao menos as principais, tem um caráter quase sagrado. É como se fosse parte da "liturgia doméstica". De fato, Nosso Senhor instituiu o principal sacramento da Igreja, a Eucaristia, antecipando o seu sacrifício e tornando-o perpétuo pela Santa Missa, no contexto de uma refeição noturna com os Apóstolos, ocasião em que também os fez sacerdotes da Nova Aliança por Ele inaugurada no Calvário. 

Esse costume moderno de cada comer a hora que bem entender favorece o desagregamento familiar. Fazer as refeições juntos, pelo contrário, colabora para a manutenção da unidade do casal e dos filhos, contribui para todos se sintam parte de um mesmo grupo, que partilha dos mesmos alimentos.


Comer juntos auxilia também na boa educação, pois podemos corrigir pequenas imperfeições de nossos filhos no portar-se à mesa. Cria oportunidade de conversas amistosas sobre a jornada do dia, os compromissos, a agenda, as alegrias e as tristezas, as conquistas e as dificuldades. É um momento em que não se foca na individualidade, mas no caráter comunitário dos comensais. Não são apenas pessoas que, por acaso, estão comendo, isoladamente, mas no mesmo horário e local, como estudantes em bandeijão de universidade que se sentam juntos apenas pela falta de outros lugares, mas que sequer se conhecem ou se falam. Os familiares não comem juntos por um aspecto circunstancial, mantendo-se em um terrível individualismo. Não. Eles se reúnem porque, nesse momento, são uma comunidade, são parte de algo maior. E querem celebrar essa pertença à família, conviver filhos e pais, esposa e esposo, irmãos e irmãs.


A refeição em comum da família católica começa com a bênção da mesa, com o dar graças pelo alimento recebido. Pode-se usar o Rituale Romanum, da forma ordinária ou da extraordinária, como modelo, em latim ou vernáculo, dessas preces, variando conforme o calendário litúrgico. Pode-se usar o costume de algum instituto de vida consagrada. Ou ter sua própria sequência familiar de orações antes e depois da comida. Aqui em casa, adotamos o costume dos Legionários de Cristo, que é inspirado na liturgia da bênção dos alimentos: o Pai Nosso e o Abençoai-nos, Senhor, e a estes alimentos, antes da comida, e o Nós vos damos graças e o As almas dos fiéis defuntos, depois de comer. Na Páscoa, temos uma bênção solene, com leitura do texto bíblico e alguns salmos, conforme o Rituale Romanum. E no Natal, a leitura da profecia de Isaías e do nascimento de Jesus.


De nossos pais, aprendemos o valor da mesa. Na linha materna, era comum dizer que “na mesa não se canta”[1], pois era momento de aproveitar as refeições para a conversa entre os comensais, jogar papo fora, divertir-se em comum, e não isoladamente, como se cada lugar fosse uma pequena mesa pessoal. Pelo lado paterno, a expressão “a mesa é sagrada!” era sempre repetida.


Não se trata de uma sacralidade própria, mas derivada. É sagrada porque remete à mesa do altar, onde se torna presente o sacrifício de Cristo na Cruz em cada Santa Missa. Jesus mesmo, ao instituir a Eucaristia, celebrando a primeira Missa, antecipando o sacrifício da Sexta-feira Santa, fez de uma mesa no Cenáculo o altar.

É importante reunir a família em volta dos alimentos. Aqui em casa, porque as crianças são pequenas, elas almoçar em suas cadeirinhas. A Maria Antônia, mais velha, já senta conosco, mesmo após ter “papado”, para comer “de novo” e se acostumar com a rotina de todos os familiares se unirem em torno à mesa. É o momento em que o pai, chegando do trabalho, pode conviver com a mãe e os filhos, conversando, brincando, e comendo. Gostamos de explicar isso aos filhos, e fazemos questão de que todos comam juntos, salvo situações excepcionais e justificadas. “Casa não é hotel, para cada um tomar café da manhã quando quer”, ouvíamos muito de nossos pais e reproduzimos aos nossos filhos desde tenra idade.



A mesa da família católica é uma festa, e a sobriedade da postura convive harmoniosamente com a alegria de quem evita aquele excesso de circunspecção do puritanismo.
 
Vocês lembram de um filme famoso no circuito cult dos anos 80 chamado “A festa de Babette”? É um dos nossos filmes preferidos. A história faz contrastar a alegria católica – que se expressa não só na religiosidade, mas na mesa, com vinhos, comidas, festa – e a excessiva austeridade dos pietistas luteranos nórdicos – em que tudo é soturno, tudo é rígido, confundindo a superioridade da alma sobre o corpo com um desprezo por este em nome daquela, em uma herança profundamente gnóstica, e achando que, por querer o céu e renunciar ao mundo no sentido bíblico, devemos odiar as coisas da matéria, como culinária, amizade, bebidas... A francesa Babette é um símbolo da Igreja, que prega o céu a homens da terra e sabe que tudo o que foi criado por Deus é bom, e os pietistas no filme – que são pietistas mesmo – vão se abrindo a isso...

Reunir-se em torno da mesa é uma celebração da vida neste exílio, que, para os católicos, se torna um símbolo da vida eterna.

Nossa casa vive sendo aberta aos amigos para essas festas saudáveis, que inexoravelmente começam e terminam na mesa. A amizade é cultivada, risadas agradáveis, conversas por vezes sérias, e a apreciação de boa comida e boa bebida, são constantes. Todo Domingo, como bons gaúchos, há churrasco: no espeto ou na parrilla, na churrasqueira ou no fogo de chão. E ocasiões especiais pedem pratos também especiais.



Até o ato de fazer um bolo já é celebrativo, e depois “consumamos o sacrifício” comendo-o. O trabalho que dá em sovar a massa para fazer pão também é um signo do esforço do homem nesta terra por fazer o que Deus manda, o que nem sempre é fácil, embora a recompensa valha a pena.


Não é significativo que as grandes tradições de confeitaria, panificação, produção de vinhos, e até a invenção do espumante, tenham surgido não só em ambientes católicos, mas, mais ainda, em mosteiros? Os mesmos mosteiros que, com sobriedade, sabem o valor de uma comida bem feita e de reunir a comunidade dos monges para que comam todos juntos no refeitório. Eles sabem das coisas!

Ah, e sem TV, sem rádio, sem smartphones, sem tablets, sem computadores, sem celulares... À mesa se come, se bebe e nos relacionamos de verdade com quem está conosco.


[1] Evidentemente, não se trata de uma proibição da justa alegria em todos cantarem juntos em ocasiões especiais, como os hobbits, elfos e homens em cena clássica do filme “O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei”. O que se quer evitar é o isolamento, o individualismo, o ficar ensimesmado à mesa: enquanto todos conversam e participam, um fica cantando como se não participasse do convívio social.

Rafael Vitola Brodbeck

Um comentário:

Renan Martin disse...

Estava esperando por essa postagem! E está muito boa!
Obrigado!

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